sábado, dezembro 24, 2005

Sra. Tudo.

Sra Tudo.

Já cansadas seguem essas palavras, já sem vida escreve esse punho. E só de pensar nas tantas aventuras que poderia criar já se perde em devaneios sem nada concretizar. E assim têm sido os dias dessa escritora que se vê esquecida, que abandonou a si própria e resolveu viver nas dunas de uma praia. Já não se sentia mulher, já não se sabia humana e suas formas cristalizavam aquilo que pensava existir.

Sim, Dona Praia, Dona Concha, perambulava sem destino e carregava tudo que encontrava no seu caminho, amarrando numa longa corda... garrafas, sapatos, bóias, madeiras e cracas, muitas cracas e o infinito dessa praia sem fim.

E para onde se vai quando não se sabe quem é? A lugar algum ou ao lugar qualquer... vagava sem rumo, numa única direção... ia sempre para o sul, pois sabia que um dia havia vivido lá... e o sul nunca acabava... e ela parecia um manto negro que se movia a favor do vento, ou mesmo um grande barco com muitas âncoras e objetos pesados em sua corda... e sabia-se só, mesmo acompanhada das horas e do tempo das coisas.

Que diferença fazia se era noite ou dia? Apenas enxergava mais, ou menos e se via a viver no limite do tempo das coisas. Nada pode ser eterno.

Seus cabelos cresciam e chegavam aos seus pés onde tocavam a areia salgada do mar e raptavam pequenos moluscos em suas conchas, caranguejos, medusas descoloridas, ovos de arraia, como um grande mosaico de fios e formas... era esse ser flutuante que, ao mesmo tempo que não se sabia existir tomava elementos de vida a compor sua figura.

Não se sabia feliz ou triste, nua ou coberta, quente ou fria, mal se sabia e, por mais que não quisesse perceber, existia.

Até que num instante insólito de falta de luz e céu estrelado já se fazia noite e D. Praia, que era tudo, estrela, mar, peixe e concha deitou-se sob o brilho da lua sem muito pensar e muito menos esperar... num horizonte escuro apenas o barulho do mar... e repousou... e como se fosse milagre, pela primeira vez sonhou, algo que nunca lembrara, afinal já nem se sabia viva. E lá estava ela e seus cabelos de vida deitados sobre a areia gelada e salgada da praia, quando uma figura divina apareceu... e parecia mulher, e parecia serena e revelava-se cintilante e lhe falava com voz aveludada:

“Olá D. Praia, Sra Duna, Mulher Concha! O que tens para me dizer sobre minha praia e seus encantos? Em que lhe fui útil em toda sua vida de eremita em meu tão ruidoso reino?”

Ela respondeu: “Não sei o que dizer, a não ser que vivi apenas o clarear e escurecer, o esfriar e o esquentar. Só lembro daquilo que encontrei e daquilo que se apegou aos meus cabelos e à corda que puxo com tanto pesar”.

E a figura iluminada tornou a indagá-la: “não me diga que vivestes uma vida inteira à beira-mar sem nunca as cores contemplar. Não me diga que não vistes as mais lindas cores do pôr-do-sol, as quais valeriam toda sua vida de longas caminhadas. Não me digas que não se sentiu agradecida e plena por estar em contato pleno com a energia divina que emana da vida pulsante de minha praia. Talvez por isso tenhas carregado tantas coisas na tua corda e nos teus cabelos. Talvez por isto tenhas esquecido de si mesma. Talvez por isso nada faça sentido para ti, pois aquilo que há de mais valioso no universo não pode ser guardado e carregado, apenas sentido e tudo aquilo que passou sob teus olhos negros de insatisfação foi abandonado e tu não te sentes alguém... e, foram dias de sol e dias de chuva, noites estreladas, ressacas, ondas bravas, conchas coloridas, dunas em movimento. Todo o universo estava ao teu redor em pleno espetáculo de magia, gritando pela tua sensível atenção e, apesar de poderes ver, estavas cega, apesar de poderes ouvir, estavas surda e, ao invés de seres feliz, apenas carregastes um fardo”.

Dona Tudo, que agora era Nada pensava atordoada, pois já nem sabia se pensar, sequer se questionar e aos poucos lembrou das mais intensas vivências em toda sua vida na praia e sentiu-se vazia e plena, feliz e triste, lúcida e insana e arrancava os objetos da corda e fazia um grande círculo com ela e com um pedaço de caco de vidro cortava as longas melenas e tudo aquilo que as povoavam e foi dançando feito louca. Gritando, sorrindo e chorando que cortava seus cabelos e se descobria mulher e o melhor, se descobria viva, livre, feliz e eterna. Perdeu a noção de tempo e espaço, assim como perdeu de vista a figura iluminada que lhe falava. E, nada mais importava agora, mesmo antes não importava. E Sra nada se percebeu Tudo e se desfez em milhares de grãos de areia das dunas, em ondas luminosas no imenso mar, em cores das conchas dos moluscos.

Demorou, mas descobriu que era TUDO e por ser TUDO era feliz e por ser feliz bastava o sentir e o viver e, como já havia visto muitos pôr-do-sol, sentido o vento da praia, escutado as gaivotas também era aquela figura luminosa, de voz aveludada que a tudo criava e por tudo zelava. Exatamente, ela era a zeladora da praia, sua inquilina maior, a energia da vida. Ela era tudo e, ao mesmo tempo, nada. Ela era EU.

Imagem e Texto: Luciane Goldberg

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